quarta-feira, 27 de outubro de 2010

passos em frente

há tanto tempo não saía de casa, que seus olhos agora lacrimejavam com o vento gelado que acariciava seu rosto pálido. deu dois passos. parou. pensou em voltar pro calabouço escuro em que transformara seu próprio quarto. lá encontrava a ilusão de um conforto. lá as paredes impecavelmente brancas e as janelas e porta trancadas a protegiam. não voltou, porém. deu mais alguns passos em frente, contra o vento que ainda lhe arrancava lágrimas. quando encontrou a areia, foi tomada por um prazer que há muito não sentia. não se lembrava da textura, da temperatura, do cheiro do mar que agora banhava seus pés friorentos. afundou naquela areia molhada, como uma criança querendo esconder o pé. a lágrima que caiu nesse momento desprendeu um sorriso de canto de boca, tímido como a espuma que nascia na beira daquela água. fruto de poucas ondas que chegavam, também tímidas. resolveu se destrancar por um instante da prisão instalada em seu interior e olhou a sua volta. era tanta vida! pessoas correndo, crianças brincando. sentiu-se bem. se permitiu fazer parte daquela vida toda. dessa vez deixou que o vento, a areia, o mar, a vida lhe desprendessem uma gargalhada alta, cujo som também não se recordava. respirou fundo, porque queria deixar todo aquele vento entrar. vento que carregava o som daquelas gargalhadas, daquele mar. queria se encher da vida que o vento parecia carregar. quando se deu conta, tinha se transformado no próprio vento.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

por si só

tenho sentido vontade de escrever sobre aquele vaso vazio de plantas, o botão largado no canto do quarto e o suor que escorre direto para o chão. não sobre a ausência da flor, da blusa e da pele. vejo sentido no que é por si só, sem nexo ou necessidade de explicação e complemento. não precisa ser grande, ou importante, ou apaixonante, ou qualquer outra coisa. só precisa ser escrito, se vem de dentro.

pingo de gota

tem um pingo de gota passeando pelos pelinhos do meu braço. arrepio. meu corpo pulsa, vive. vive e pulsa e o pingo de gota se multiplica. vem de dentro, brota de mim e me faz sentir. tem uma cachoeira em algum lugar daqui, cheia de pingos de gota, que deslizam e se espalham pelo meu corpo, até me fazerem transbordar. eu me afogo nos meus pinguinhos de gota. e aí eu respiro dentro deles.

nua

quando eu andava nua na rua crua de sombra da árvore, o vento me vestia ao mesmo tempo em que me despia daquela energia que não era minha. o pesado virava levinho. a minha roupa era o vento. meu alento por dentro da pele, dentro do peito, em cima do leito. meu músculo não reprimia meus sentimentos por dentro da carne. eu não tinha roupas, ou muros, ou cercas. eu não cabia em fôrmas. porque eu era do tamanho de tudo o que é livre, de tudo que é ar, de tudo que é vento.